terça-feira, 8 de julho de 2008

HISTÓRIA DO REGRESSO


Camaradas

Atendendo ao solicitado no blogue do "Luís Graça & Camaradas da Guiné" (blogueforanadaevaotres.blogspot.com), para que escrevessemos a história do "Regresso" à Metrópole, foi publicada naquele sítio, o meu regresso (P3037), com o título "E Vieram todos - Luís Dias -Cheira bem, cheira a Lisboa".

No regresso dissemos: “E vieram todos!”

O regresso do BCAÇ3872 a Bissau, oriundo do Leste da Guiné, zonas de Cancolim (CCAÇ3489), Saltinho (CCAÇ3490), Dulombi/Galomaro (CCAÇ3491), Galomaro (CCS), deu-se no dia 9 de Março de 1974.
Ficámos instalados no Cumeré, onde estivéramos no já longínquo ano de 1971, mais propriamente ali chegados na véspera de Natal de 1971…..Raio de três Natais passados nas terras quentes e vermelhas do Corubalo e a família tão distante....
Em virtude de ser o 2º Comandante da CCAÇ 3491, fui nomeado pelo Capitão para, juntamente com o 2º Sargento Chanca, procedermos ao “desembaraço” da Companhia. Isto queria normalmente dizer que dificilmente eu iria acompanhar a Companhia no embarque para a Metrópole, marcado para o dia 28 de Março, pois a burocracia a efectuar era muita. Efectivamente, a Guia de Desembaraço necessitava de ser assinada pelos responsáveis de diversas repartições, secções, secretarias, serviços, a saber: REP/OPER/QG/CC; REP/INF/GC/CC;REP/PESLOG/QG/CC; REP/ACAP/QG/CC; SEC/POP/QG/CC; 1ª REP/QG/CTIG/OF e 1ªREP/QG/CTIG/FICH; 2ª e 3ª REP/QG/CTIG; 4ª REP/QG/CTIG; SVC SAÚDE; SVC TRANSPORTES; SVC JUSTIÇA E DISCIPLINA; SECRETARIA/QG E BIBLIOTECA/QG.


No dia seguinte lá parti para Bissau, com o 2ª Sargento Chanca e um condutor, para conseguir obter as tais assinaturas, mas a coisa….não era fácil. É que em cada local tínhamos de primeiramente de recolher um montão de assinaturas de secções e subsecções, para aceder, finalmente, à assinatura principal, a do Chefe da Repartição.
Foi uma luta diária, uma lufa-lufa, apenas interrompida unicamente para o desfile de despedida perante o ComChefe, o General Bettencourt Rodrigues (relembro o momento emocionante da chamada aos mortos, na qual a nossa Companhia não teve de responder presente, pois tivemos a sorte de não ter sofrido baixas). Já não havia o habitual discurso do Homem Grande de Bissau que dizia: “….chegastes meninos! Partis homens!”.
O trabalho que aquilo nos dava, quase não deixava tempo para saborearmos umas ostras e uns cocktails de camarão, mas conseguimos - Ah! O Grande Chanca que foi uma preciosa ajuda no paleio e a dar a “volta” àqueles sorjas das subsecções.
No dia 28 de Março saímos do Cumeré em direcção ao Porto de Bissau, com o pessoal da Companhia a cantar canções do cancioneiro do Dulombi e da Tecnil e músicas populares portuguesas, em que se destacava aquela do: “..Cheira bem, cheira a Lisboa!”. O embarque no navio Niassa deu-se sem quaisquer peripécias, a não ser o costume do amontoado de pessoas e bagagens nos porões, onde os praças seguiam “empilhados” – péssima maneira de estimar quem dera o coirão pela Pátria.

ADEUS GUINÉ

É o fim do castigo
Terminou a comissão
É necessário gritar
“Piras”! Não venham
Deixem isto acabar
Morrer de tédio
Sem remédio
Isto é vida de cão
A velhice vai embora
Enquanto a bajuda chora
E a nau está a naufragar

Adeus Guiné!

Grita se quiseres
Se te apraz
Se te sentes feliz
Se isso te satisfaz
Eu não quero continuar de verde-claro
Saí do Dulombi!
Deixei Galomaro!

Sofre-se porquê? Se não mereces tal sacrifício
Ou é apenas vício?
Tu não sabes o que andas a fazer ou afinal até sabes….!
Espero que de mim só leves suor e muitas lágrimas
Cheira bem, cheira a Lisboa!
Aqui o tempo está parado
Lá parece que voa
Sabes como é
Tudo é finito
Assim solto meu grito
Ponho-me de pé
Atraca o navio. É hora de embarque
Viro as costas ao cais
Aqui não volto mais
Não há lágrimas em destaque

Adeus Guiné!


O navio Niassa da Companhia Nacional de Navegação
A viagem decorreu sem incidentes até ao Funchal, onde desembarcaram as companhias independentes: CCAÇ3518 (Gadamael/Guidage), CCAÇ3519(Barro/Cacheu), CCAÇ3520(Cacine) bem como os graduados do Batalhão e da CART3521 -Piche/Bafata/Safim- (que iria connosco até ao continente) que foram autorizados a dar uma volta pela cidade. Aproveitei para comprar umas orquídeas para a minha mãe e para telefonar para casa a dizer que estava na Madeira e que iria regressar de barco, mas sem dizer quando.
Durante o passeio, umas senhoras inglesas, já de alguma idade, perguntaram-nos sobre o navio e o porquê de só saírem alguns militares e outros terem ficado no barco. Respondemos que se tratavam de militares que vinham de regresso a casa, depois de terem estado mais de dois anos a combaterem em África, sem verem mulheres brancas e que se lhes dessem liberdade, nem as velhinhas lhes escapavam….!!! O que elas riram! A razão não era essa, é claro, mas se eles todos saíssem e com aquela poncha….uma semana depois ainda ali estaríamos à espera ou à procura de muitos deles.
No barco fui muito bem tratado, até porque algum pessoal de apoio era de Alfama, do meu bairro e, portanto, estava a jogar em casa e a propósito de jogo, lembro-me de ter ganho mais uma aposta ao Furriel Enfermeiro Nevado, um sportinguista ferrenho, com o qual passava a vida a apostar, quer em futeboladas no Dulombi, nas quais ele tinha de reunir simpatizantes do FCP, com os seus do SCP, para jogarem contra os militantes do Benfica, o SLB e…infelicidade para ele, lá se ía uma grade de cerveja ao ar. De facto, como campeonato quase ganho e ganhou-o, o Sporting recebia o Benfica, no Estádio de Alvalade (31/03/74) e o Nevado lá estava pronto a apostar uma garrafa de whisky, em como levávamos uma abada, aceitei e claro….depois de uma grande jogatana, que nós ouvimos integralmente pelo relato radiofónico, o SLB espetou 5-3 à lagartagem – bons tempos – e paga Nevado!!! Para a memória de alguns, vejam lá a constituição das equipas nesse grande jogo:
Sporting: Damas, Manaca, Bastos, Alhinho e Carlos Pereira, Vagner, Nelson e Dinis (Dani), Marinho Yazalde (Chico) e Dé.
Benfica: José Henrique (substituido por Bento por ter fracurado um dedo), Artur, Humberto Coelho, Barros e Adolfo, Toni, Vítor Martins e Simões, Nené, Dimantino (o louro), Jordão e Vítor Baptista.

O Tejo é tudo!!!!

O navio entrou no estuário do Tejo pela madrugada do dia 4 de Abril. Assisti da amurada ao nascer do sol sobre Lisboa – o tempo estava límpido – o brilho que se reflecte nas águas do rio e dá aquela cor inigualável às casas da zona antiga. Estava ali a minha cidade, mais velha que Portugal, com 20 séculos de história, onde eu vira a luz do dia, há 23 anos, a cidade que Alain Tanner iria apelar de cidade branca. Sentia os odores frescos daquela manhã e os sons do início do bulício do dia. As fragatas do Tejo sulcavam as águas (ainda existiam) e os cacilheiros lá andavam no seu vaivém. Lisboa acordava do seu torpor nocturno e iniciava um novo dia. A cidade das sete colinas (só Roma foi também assente sobre sete colinas), apresentava-se, como diz na canção Carlos do Carmo; “…toalha à beira-mar estendida…” (letra de Ary dos Santos) e ainda como fala o poeta Joaquim Pessoa:

“Em Lisboa a gente morre sem idade.
Devagar. Como se faz uma canção.
E há um pássaro que voa. É a saudade.
É uma janela aberta. O coração.”

Muitos homens choravam, num silêncio feito de muitos ruídos contidos, de muitas emoções estancadas no peito. Lisboa representava aqui, seguramente, as suas terras, os seus lugares e lembrava-lhes o tempo perdido, longe das suas famílias, dos seus amigos – era o regressar da sua natureza.
O navio iniciou as manobras de atracagem na Rocha do Conde de Óbidos – com o Miradouro das Janelas Verdes em frente – e o cais já fervilhava daquelas gentes que vieram, na sua maioria, de longe, de muito longe, para dar o primeiro abraço aqueles que chegavam depois de quase 28 meses na Guiné.
Olhei em volta. Os homens acotovelavam-se para melhor verem a multidão, punham as mãos na cara, a envolver os olhos, a fazer de binóculos, para melhor localizarem os seus familiares. Vi muitos dos meus camaradas da Companhia e pensei em voz alta:”E VIERAM TODOS!” E, novamente, pensei no poeta – “…a dor que vai dos lenços aos navios..”, “….desembarquei aqui. Estou desarmado. Lisboa cabe dentro dos meus olhos.”, “Desembarquei aqui. Sem uma espada.”
E na emoção pensei nos que lá ficaram, nos que perderam a vida e contive a lágrima.

“Os que tombam às portas da cidade
Sobre um lençol de feridas e de fogo
Sem nome. Sem culpa. Sem idade.
Que assim morrem os homens deste povo.”

Em virtude de não terem aparecido, em devido tempo, quaisquer autoridades para nos receberem e para o desfile da praxe (um prenúncio dos tempos que se iriam seguir), o Tenente-Coronel Castro e Lemos, Comandante do Batalhão, numa atitude de coragem, ordenou o desembarque da força militar, sem quaisquer outros procedimentos.
Da amurada conseguia ver o meu pai – o ti Porfírio, como amavelmente lhe chamavam os amigos e conhecidos lá do bairro – que estava no cais, na zona de desembarque, porque como era Conferente Marítimo, tinha autorização para estar naquele lugar e devido ao seu trabalho tinha conseguido saber que o barco em que vinha o batalhão era aquele, quando chegava e, assim, informou a família mais chegada e lá estavam a minha mãe, D.Venina, a minha avó, D. Maria de Jesus (que diariamente rezava com um grupo de amigas, na Igreja de S.João da Praça, por mim, e a quem eu dizia, na brincadeira, para dia sim, dia não, rezarem também pelos outros camaradas), o meu tio Armando (que tinha sido muito importante no apoio aos meus pais, enquanto estive em África), a esposa, tia Bernardette, as minhas primas Helena e Paula e a namorada da altura, a Ana. O Batalhão seguiu para o RALIS, onde foi feita a desmobilização, onde se deram os últimos abraços, bem difíceis por sinal, àqueles que connosco privaram diariamente em mais de dois anos e com os quais vivemos momentos complicados – foram a minha família – e estarão sempre dentro do meu coração, mantidos naquele lugar onde guardamos as coisas importantes que nos aconteceram na vida.
Vieram promessas de encontros e reencontros….mas a companhia só viria a reunir passados 25 anos após a nossa chegada. É claro que alguns de nós se foram encontrando ao longo dos anos. Fui mantendo o contacto com o Capitão Pires, com os Alferes Farinha e Parente (enquanto trabalhou em Lisboa. Felizmente para ele, anos mais tarde, teve a hipótese de ir trabalhar para a sua bela cidade – Viana de Castelo – e por lá está), os Furriéis Soares e Gonçalves (este quando vinha de férias do Canadá, para onde emigrou e onde é proprietário de um bom restaurante em Otava), o enfermeiro Pires, o Salsas (dos “dilagramas” que estava na PSP-Trânsito), o Graciano (que trabalhava na Carris), o Sousa (apontador dos morteiros 81) e o Professor Dr. Rui Coelho (o excelente médico que nos encheu de orgulho por ter sido o pioneiro no nosso país da fertilização in vitro e que via com certa regularidade nos jogos do Benfica, no Estádio da Luz) e claro, outros mais.
No dia da chegada fui jantar com a família a um restaurante situado junto do Coliseu dos Recreios, que decorreu com muita alegria e sem quaisquer perguntas sobre a comissão, aliás eles sempre respeitaram o meu ritmo de falar sobre aquela guerra.
Os primeiros dias da vida civil foram estranhos……desconfortáveis e como dizia aquele milícia que tinha ganho o prémio Governador, para visitar a Metrópole: “Txi alfero aquilo é manga de coluna sem escolta” e ainda “Pessoal lá manga de esperto, faz tabanca sobre tabanca”, querendo referir-se aos carros e às casas. Era de facto tudo muito estranho, uma profusão de ruídos, mas parecia faltar qualquer coisa…e, no entanto, não descortinava o que era.

A Sé de Lisboa

Passeei pelo meu bairro, Rua da Regueira, abaixo da Igreja de Sto. Estêvão, Largo da Palmeira e da Igreja de S.Miguel, Largo de S.Rafael (com uma parte da muralha mourisca, reforçada posteriormente pelo Rei D.Fernando, que para o lado da Rua da Judiaria está encimada pelas denominadas “Janelas de Alfama”, abertas ao Tejo, através do Arco do Rosário), depois a Rua da Adiça, onde morava a minha avó, Rua de S. João da Praça, onde morava o meu amigo de infância, João Carlos Ribeiro - iria regressar depois do 25 de Abril, da comissão em Moçambique (zona de Mueda). Passei pelo meu Grupo dos Escuteiros (Grupo 48 do CNE – não voltaria mais aos escuteiros, depois de tantas noites de mato, não sentia a necessidade de voltar a acampar tão cedo!) e dirigi-me ao Café “Flor da Sé”, ali de fronte para a Sé-Catedral e a Igreja de Sto. António ao lado e a Madalena mais abaixo, onde paravam os meus amigos. Subi lentamente até ao Castelo de S. Jorge, seguindo pela Rua de S. Mamede (a velha Escola 115 ainda lá estava, onde fiz a primária e que tinha um recreio com uma majestosa vista para o Tejo), passando pelo Miradouro de Sta. Luzia, onde vivi em pequeno (vista fabulosa sobre a velha Alfama, com a pequena Igreja da Ordem dos Cavaleiros de Malta a guardar o local).

Vista do Miradouro de Sta. Luzia/Cerca Moura

No Castelo deliciei-me com a vista sobre a cidade e revi os sítios onde passeava com os meus amigos e com as colegas de escola e onde roubei os primeiros beijos a algumas das namoradas.
Ainda por lá andavam os elementos da Legião Portuguesa que uns anos antes me tinham detido (ilegalmente) pelos graves crimes de “atirar azeitonas às miúdas” e por ser “o proprietário de um gira-discos portátil, com o qual estávamos a ouvir música em grupo” (o 25 de Abril iria acabar com estes prepotentes).
Percorri durante o dia as ruas da minha cidade, para me identificar e recuperar os sabores, os cheiros, os barulhos de Lisboa, ainda um lugar de exílio, como dizia da pátria, o poeta Daniel Filipe (que eu apreciava muito e por tal facto dei o seu nome ao meu filho, nascido em Agosto de 1979). Perder-me no meio da multidão, sem medos, descansado e sem obrigações…..
Fui ao longo do tempo perdendo a tentação de me atirar para o chão, em cada vez que ouvia um “rater” de um carro ou de uma mota ou ainda o estoirar de um foguete das festas populares e de sentir um baque no coração, de cada vez que a porta do frigorífico lá de casa era fechada com mais força.

“Há sempre a lembrança
De um olhar a sangrar
De um soldado perdido
Em terras do Ultramar
Por obrigação
Aquela missão
Combater na selva
Sem saber porquê
E sentir o inferno de matar alguém
E quem regressou
Guarda sensação
Que lutou numa guerra sem razão
Sem razão, sem razão
Há sempre a palavra
A palavra nação!”
(Aquele Inverno – Letra e música dos Delfins)

O Ex-Alf L.Dias em Abril de 1974, já em Lisboa

Nos primeiros tempos, enquanto não arranjava trabalho, envolvi-me no teatro amador do Lusitano Clube, vindo mais tarde a ajudar a fundar a “GOTA – Grupo Oficina de Teatro Amador”, com sede na Rua de S. Mamede ao Caldas.
Na noite de 24 para 25 de Abril estive numa discoteca por trás da Av. De Roma, juntamente com Alferes Farinha e umas amigas e regressei a casa pela madrugada, passando pelo Terreiro do Paço, onde, certamente, as forças revoltosas estavam a chegar, mas não dei por nada, tendo sido acordado às 8h30, pelo meu amigo Farinha, que me disse para me levantar e vir para a rua porque estava a decorrer uma revolução.
O 25 de Abril abriu-me o peito de esperança e alento para a reconstrução de uma nação livre e democrática, terminando com a Guerra Colonial. Foram tempos de aprendizagem política e de grande intervenção popular, que alimentaram o meu apetite para viver intensamente aquele novo fenómeno.
Em Abril de 1975 ingressei na PJ e voltei a pegar em armas, embora o inimigo fosse de outro tipo – a criminalidade violenta e organizada. E, pasme-se, participei em operações e acções em que tivemos de recorrer a tácticas interventivas aprendidas na Guerra Colonial. De facto, os colegas mais velhos, embora fossem excelentes polícias, não estavam habituados a situações de troca de tiros, mormente, quando estes lhes eram dirigidos. A geração que entrou pós-25 Abril, que tinha participado na Guerra Colonial, foi importantíssima para estancar a violência que se instalou a seguir e deu, mais uma vez, o corpo ao manifesto, agora pela sociedade portuguesa. Como é costume, as armas que a PJ tinha então eram inferiores, em calibre, às que os criminosos usavam, pelo que tínhamos de recorrer a material apreendido, nomeadamente a armas de calibre 9 mm Parabellum. Só mais tarde, recebemos armas mais modernas e, hoje em dia, a PJ detêm, em matéria de armamento, nomeadamente, em armas curtas, do melhor que se usa em termos policiais.
Estive envolvido em diversas situações de troca de tiros com criminosos e mantive em meu poder uma espingarda de assalto Kalashnikov, no modelo AKM, mais moderna do que as que enfrentávamos na Guiné (modelo AK-47), que eu próprio apreendi a um grupo criminoso violento, que praticava assaltos à mão armada e violações, na área da Grande Lisboa, em Fevereiro de 1979. Só em Janeiro de 2001, quando aceitei um cargo de Direcção (Director do Departamento de Armamento e Segurança), é que deixei a arma na minha antiga Secção.
Durante todos estes anos poucas vezes falei abertamente do que tinha passado na Guiné, a não ser com colegas que tinham estado no mesmo teatro de guerra, ou em Angola e Moçambique. No princípio do meu regresso as perguntas eram as que eu entendia não responder, por se limitarem a perguntar: Quantos pretos mataram? Quantas pretas comeste? Depois, com o 25 de Abril, parecia que os combatentes eram lepra e era politicamente incorrecto falar-se da guerra colonial, eram estigmatizados, como os que mantiveram o regime (Fosca-se!!!). Devíamos ter fugido ou desertado para França, etc., era o que diziam. Os heróis eram os outros…..
Anos depois, começaram a surgir alguns livros sobre a guerra, na sua maioria romances, e quando tinham algum valor técnico, referiam sempre a iminente derrota militar na Guiné e também em Moçambique. Depois começaram a surgir algumas obras tecnicamente mais aperfeiçoadas, com visão estratégica sobre os factos acontecidos, deixando à consideração do leitor uma evolução do que poderia ter sucedido.
A companhia voltou a reunir-se 25 anos depois da chegada, no Regimento de Infantaria nº 2, em Abrantes, donde tínhamos partido em Dezembro de 1971. Foi um reencontro emocionante, com muitas lágrimas à mistura, vivido também intensamente pelas famílias que compareceram.
Depois deste primeiro encontro oficial, realizamos todos os anos um convívio, normalmente no mês de Maio, com grande afluência de elementos.

Acreditei que, efectivamente, um dia, a Guiné seria independente - era o rumo da história no seu movimento inexorável - mas senti uma grande tristeza quando tive conhecimento que muitos que combateram a nosso lado, fosse por interesse monetário, fosse por sentirem fazer parte da nação portuguesa, serem parte da nossa Pátria, foram eliminados. O nosso país, infelizmente, não soube merecê-los e o inimigo talvez tenha perdido a possibilidade de unir, verdadeiramente, as tribos da sua nação. Um dia terá de fazer-se justiça, de honrar os seus nomes.
Consegui ultrapassar bem e deixar para trás a vida de combatente, mas reconheço que muita da minha personalidade foi “reformatada” pelo tempo que passei na Guiné (que muitos apelidavam do nosso Vietaname), no território cuja fama nas fileiras militares portuguesas causava um arrepio e era o último sítio que alguém queria ter como local de mobilização, quer pelo seu clima insalubre, quer pela intensidade da guerra que ali existia, ficando na ideia de quem estava na Metrópole, que era a província de onde mais provavelmente se podia regressar na posição horizontal.
Sinto orgulho de ter estado ao lado de tantos e tantos homens de grande carácter, generosidade e coragem, capazes de arriscar a vida para salvar a do camarada a seu lado, de viverem em condições incríveis e de conseguirem manter um elevado nível de moral combatente. Talvez, bem lá no fundo, esteja ainda “apanhado” por aquele clima.
Termino com os agradecimentos a António Lobo Antunes, quando em relação aos combatentes da Guerra Colonial disse: “Que o país os beije antes de os deitar fora e lhes peça desculpa” e um abraço aos tertulianos António Graça Abreu, Joaquim Mexia Alves, António Santos e Coronel Amaro Bernardo e a tantos outros que escreveram sobre se a Guerra na Guiné estava militarmente perdida (que do meu ponto de vista e deles não estava – o povo português é que já estava farto de guerra), como eu os compreendo!
Um abraço a todos os tertulianos

Luís Dias
Ex-Alf. Milº da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872
Guiné 71-74

"ESTORIETAS" DO DULOMBI E DE GALOMARO

O GAGO DO DULOMBI
Para além de cmdt do 2º Gr. Comb, e de 2º cmdt de Companhia, eu era ainda o responsável pelo armamento da CCAÇ 3491. Um belo dia, no nosso aquartelamento do Dulombi, um elemento operacional veio ter comigo informando-me que tinha um dilagrama que não estava em condições e pedia autorização para o destruir. Como era usual nessas situações, disse-lhe para informar as sentinelas dos dois torreões (postos de vigia elevados) que estavam virados para a zona de onde aconteciam, normalmente, os ataques do IN, bem como os elementos das casernas dessa área e que atirasse o dilagrama a seguir ao heliporto, isto depois de se apurar senão havia alguém da população por perto.
Depois de obter o ok de que não estavam elementos da população na área – o que seria raro, pois as zonas de cultivo eram no lado oposto ao quartel, foi lançado o dilagrama. Minutos após a explosão, surgiu um elemento da população a correr para o quartel mal conseguindo dizer que o queriam matar, pois a granada tinha caído junto dele.
Tratava-se de um elemento da população que era gago e que se encontrava a tomar conta da sua plantação de amendoim, para evitar que os babuínos a destruíssem e embora não fosse normal estarem elementos da população daquele lado, ele tinha plantado a “mancarra” no lado do IN e a sentinela não o vira passar.
Deslocando-me ao local onde a granada explodira é que me apercebi da sorte que o homem teve e a nossa. Ele encontrava-se sentado num tronco de uma árvore caída no chão, bastante largo e a granada projectada através da G3, tombara do outro lado da árvore, praticamente a seu lado, mas a explosão, tendo a barreira da árvore, lançara os estilhaços como um efeito dirigido, deflectindo-os para o lado contrário do indivíduo, cravando nas árvores e vegetação em redor os respectivos estilhaços - incrível!
Deste modo, para além do grande susto e de ter ficado um pouco aturdido pela explosão, o elemento da população não teve quaisquer ferimentos (!!!) e…..ficou, segundo pensamos, um pouco mais gago do que já era, enfim, podemos dizê-lo, um mal menor….face aos estragos que produziam, como se sabe, as nossas granadas defensivas, com aquela espiral de metal que, no rebentamento, resultavam em pequenos estilhaços. Coitado do homem….e o dobro do turno para o sentinela, é claro.

O DIA EM QUE O PAU DA BANDEIRA DE GALOMARO SE DOBROU PERANTE NÓS
Na nossa companhia havia o são costume de que, quando alguém fazia anos e se lhe competisse ir para o mato ou efectuar qualquer outro tipo de acção operacional, era dispensado. Esta situação manteve-se durante o tempo que estivemos na guerra, quer no Dulombi, quer em Galomaro e sempre que fomos de intervenção para outras zonas.
Mas se era fácil dispensar um praça, ou mesmo um furriel, quando se tratou de um alferes e estando a CCAÇ 3491 na sede do Batalhão, a partir de 9 de Março de 1973, a coisa iria ser diferente, como eu iria sentir.
Faço anos em Dezembro e organizei o petisco para comemorar com os camaradas nesse dia de 1973. Mas estas coisas são mesmo assim e pimpa lá estava o meu grupo de combate, juntamente com outro com uma operação marcada para se iniciar no meu dia de anos.
- Porra! Azar do car……..! Tinha de ser neste dia!
Falei com o capitão e ele disse-me logo que ali tinha de ser o Cmdt. de Batalhão a decidir, porque a op. era organizada pelo Chefe de Operações – o Capitão Pamplona. Pensei logo que estava quilhado, porque o Tenente-Coronel Castro e Lemos era “tramado”, mas decidi expor-lhe a situação. Disse-lhe o que era o nosso costume, que já no ano anterior estava longe da companhia, no Curso das Unidades Africanas, em Bolama, que o outro alferes podia comandar os dois grupos de combate, como acontecia, quando um estava de férias, etc. …..Bem, vim de lá com as orelhas a arder, sem conseguir a dispensa, embrulha e vai para o mato, que não há nada para ninguém.
Disse aos camaradas graduados, capitão, alferes e furriéis da companhia, bem como alferes e furriéis da CCS, que a festa ficava adiada 2 dias, mas fazia-se e mesmo que eu não voltasse, podiam comer o petisco à minha conta (nunca sabíamos o que podia acontecer). Combinei as coisas com os cozinheiros e no meu dia de anos, pelas 06h00 lá fui para o mato, na Acção “Escape” (eu bem queria escapar!), que durou 36h00, na zona do Corubalo, embora, felizmente, sem quaisquer problemas.
No regresso, à noite, o maralhal lá se juntou para o real petisco e para beber umas bazookas, primeiramente, e depois passámos ao melhor artigo e usual costume, que era enfiar um pedaço de gelo num terrina de sopa, despejar-lhe uma garrafa de Whisky e completar com Coca-cola e íamos passando uns aos outros, para beberem todos pela terrina. Quando acabava, torna a abrir mais uma garrafa e por aí fora……
É claro que nos oficiais presentes não estavam os elementos do Estado-Maior do Batalhão, embora eu tivesse uma excelente relação com o 2º Cmdt, o então Major Moreira Campos, um oficial muito apreciado por todos nós (felizmente ainda vivo e que esteve presente, em 17 de Maio último, no almoço da nossa Companhia).
Bebida vai, bebida vem…..o fresco do gelo ……o calor a pedir mais e mais... Enfim já todos sabemos como, normalmente, as coisas acabam, ou seja, muitos de nós estavam, obviamente, com os copos.
Pela madrugada o grupo veio para a parada do quartel para tentar apanhar algum fresco da noite e alguém referiu que o Alf. R. C. estava bem bebido, ao que ele retorquiu que não senhor e que era capaz de, inclusive, subir ao pau da bandeira. Estimulado pelos outros, lá se atreveu a iniciar a árdua tarefa, que ia cumprindo com dificuldade, perante o riso dos restantes.
A determinada altura, quando o Alf. R.C. já ia para lá do meio do mastro, este, com o seu peso, dobrou-se até nós, parecendo querer cumprimentar-nos. Debandada geral.....!!!
No dia seguinte, logo pela manhã, ouvia-se os impropérios do nosso Cmdt.
- Quem foi o f.d.p..!!!! Quem fez esta mer…!!! Sacanas….!!!!
O homem ficou num desespero, sabendo perfeitamente que tinha havido uma festa e que muito provavelmente teriam sido os participantes os seus autores e eu….., muito especialmente, o culpado. Embora, nunca me tivesse perguntado nada, andou uns dias a olhar-me de soslaio. Mal sabia ele que o autor material (e nós cúmplices) era, possivelmente, o único que ele não pensaria que fosse - o nosso médico, o Alferes Rui Coelho, que tinha vindo substituir, uns tempos antes, o anterior, o Dr. Pereira Coelho, que tendo sido evacuado por doença, já não regressara ao Batalhão, porque depois foi nomeado Director do Hospital de Bafatá. O pau da bandeira lá foi endireitado e continuou a cumprir a missão para que foi criado, que era suportar o peso da Bandeira Nacional, bem mais leve que o brincalhão do médico que, nos dias seguintes, instado pela malta, dizia não se lembrar de nada - pudera, o whisky era do bom....!!!


Parada do Quartel de Galomaro, com o célebre pau da bandeira, já direito.

OS ALMOÇOS NO RESTAURANTE DO LIBANÊS EM BAFATÁ
As colunas de reabastecimentos do Dulombi eram um ponto alto na nossa actividade operacional, porque íamos almoçar a Bafatá. Arriscava-se a vida, mas fugia-se à rotina da comida do nosso quartel e sempre íamos passear um pouco numa cidade.
De facto, depois de efectuarmos a recepção dos materiais e produtos em Bambadinca, a coluna seguia para Bafatá, para todos nos reunirmos no Restaurante/Pensão do Sr. Anirof, (pelo menos o nome será parecido) o Libanês, para nos deliciarmos com o seu bife à Bota (um bife alto e quadrado) regado com um bom vinho verde, seguido da sobremesa, com o delicioso nome de “minete” (Esta agradeço ao camarada Joaquim Mexia Alves, Ex-Alf.Mil. da C.CAC 3492/Xitole, que me recordou deste regalo).
Este nosso amigo libanês gostava imenso da nossa Companhia, que ele dizia ser um caso raro, em que desde o capitão ao soldado, comiam todos na mesma mesa – o que era de facto verdade – parecia que naquele restaurante, embora com o devido respeito, éramos civis, almoçando como amigos, tentando esquecer naqueles belos repastos, a guerra. Embora, numa das vezes, em que eu me atrasei, por ter ficado a tratar de uns assuntos em Bambamdinca, o Furriel Gonçalves que ficou a comandar o grupo, foi interpelado pelo Comandante do Batalhão de Bafatá, por estar a almoçar com os praças na mesma mesa – havia que acautelar a disciplina, mesmo que fosse num restaurante civil. Haveríamos de ter mais problemas com este comandante, perto do fim da comissão, devido ao nosso fardamento, pois utilizavámos chapéus que não eram das NEPs (os quicos estavam todos rotos, o que o levou a queixar-se ao nosso Cmdt de Batalhão, que nos ordenou que levássemos os quicos para Bafatá, mesmo estando no estado em que estavam. Na verdade, alguns soldados tinham do quico apenas a pala e os bicos de trás, em cima quase nada).
O libanês gostava tanto de nós, que também perto do fim da comissão decidiu oferecer-nos um almoço à borla.
Tenho saudades desse excelente bife, amigo libanês e da simpatia das suas filhas.
Quando vínhamos de regresso, ao Dulombi, parávamos em Galomaro para levar correspondência ou trazer pessoal que estivesse de diligência e depois continuávamos, parando novamente a seguir ao aldeamento de Mali Bula, antes da bolanha do Rio Fandaré – uma zona de mata fechada (onde uma viatura da CCS haveria de rebentar uma mina A/C). A partir daqui as coisas fiavam fino, podiam ser perigosas e portanto, reorganizava-se a coluna e se houvesse algum efeito…. produzido pelo fausto almoço (Hips!Hips!) desaparecia imediatamente (os vapores eram levados pelo vento, como milagre) e o pessoal recuperava a sua operacionalidade e passava a atenção redobrada, até chegar ao Dulombi.


Vista de Bafatá, estando do lado direito, a azul, o restaurante/pensão do Libanês

Luís Dias

quinta-feira, 3 de julho de 2008

FOTOS DA CCAÇ 3491 GUINE 1971-74 VOL.9

Últimos dias no Dulombi- Alf. Dias à porta do quarto de oficiais-Dulombi -Fevereiro de 1974
À tarde, pela fresquinha, à porta da messe e da sala de convívio, diversos graduados da CCAÇ 3491, estando de frente da Dt p/ a Eq: o Fur. Rodrigues, o Alf. Dias (tronco nu), os Furs. Fonseca e Gonçalves e o 1º Sarg. Gama. De costas graduados da 1ª Companhia do BCAÇ 4518/73, (Alf. Antunes de calças e cigarro na mão e em calções a coçar a orelha o Alf Tinoco) que nos vieram substituir, (estando em tronco nu o nosso Fur Enf. Nevado)-Dulombi-Março de 1974.
Notícia saída na Metrópole (DN de 20/10/72)de um ataque ao Dulombi com armas pesadas (!!!!).
Comunicado das Forças Armadas da Guiné saído na Metrópole em que se fala de uma emboscada sobre o In, na zona do Dulombi com diversas baixas provocadas aos guerrilheiros.
Notícia sobre a emboscada efectuada na zona do Rio Fandauol às NT, quando íamos proceder à recolha de água para o quartel.

FOTOS DA CCAÇ 3491 GUINÉ 1971-74 VOL.8

LDG no Geba, junto ao Xime-1973
Vista da Rua Principal de Bafatá, vendo-se ao fundo o Rio Geba e ao lado direito, a azul a pensão e restaurante do Libanês, onde íamos comer o célebre bife à Bota, regado com um vinho verde bem fresquinho - Fevereiro -1974
O djubi Samba Djuma, devidamente fardado com o Alf. Dias-Dulombi -Janeiro-1974
A entrada do aquartelamento do Dulombi-Placa indicativa da zona do PAIGC-Janeiro de 1974
Algum armamento IN: Met. Lig Dectyarev m/DPM;Espingarda Simonov SKS;Pist.Met. Sudarev PPS-43; Esp.Auto Kalashnikov m/AK-47; Pist. Met. PPSH-41"Costureirinha";RPG-2 e respectiva gr e gr RPG-7

FOTOS DA CCAÇ 3491 GUINE 1971-74 VOL.7

O local onde estava instalado o 2º Gr. Comb/CCAÇ 3491, quando esteve de intervenção em Nova Lamego, em 1973 - Os soldados escreveram na cruz: "Os abandonados de Galomaro" (era incrível!!!).
O canhão sem recuo 106 mm instalado em Buruntuma.
O Alf. Dias em cima de uma Daimler do PEL.REC DAIMLER-Bambadinca - 1973
Passeio de jipe por Bafatá -1973
Dia de revista à Companhia de Instrução de Milícias, estando em 1º plano o Alf. Dias (Cmdt de Instrução) e em 2º plano o Fur.Gonçalves (2ºCmdt)- CIMIL de Bambadinca-1973

FOTOS DA CCAÇ 3491 GUINÉ 1971-74 VOL.6

Alf. L.Dias e o RPG-2 do IN-Dulombi 1972


O Helio-canhão pousado no Dulombi-1972
Equipa de Futebol dos Solteiros. Em pé- E p/D: Romeu, Chaves, Fur. Gonçalves, Cap. Pires. Em baixo-E p/D: Fernandes, Fur. E.Santo, Sousa e ALF. Dias-Dulombi -1972
Mina A/C na Picada Galomaro-Dulombi, accionada por um Unimog 416 - 1973 (1 ferido grave-condutor-auto da CCS)
Uma das bajudas (Fula) bonitas do Dulombi - a Sira Ure

FOTOS DA CCAÇ 3491 GUINE 1971-74 VOL.5

Vista aérea de Galomaro -1973. Do lado direito, por entre o arvoredo) a estrada que conduzia a Dulombi, Bangacia, Campata.
Petiscada dos graduados em Galomaro (CCS e CCAÇ3491)-1973. De óculos o nosso Capelão Alf. Oliveira.
Alf. L. Dias e a MG -42/59 - Em frente a um dos abrigos de Galomaro 1973.
Tropas pára-quedistas em Galomaro, para actuação na nossa zona de intervenção-1973. a caminhar e de costas o Fur. Mec.Auto da CCAÇ 3491, Rodrigues.
O 2ª Gr. Comb. da C.CAÇ3491, momentos antes de partirem para uma acção de emboscada e patrulhamento nocturno-Galomaro 1973.