quarta-feira, 21 de dezembro de 2022


 E estávamos à espera de quê? De alguém que se safou da tropa por ser filho do Ministro do Ultramar?

Não obstante o tempo passado a dor que tantas e tantas famílias sofreram por ter perdido, filhos, pais e amigos, no território da Guiné. Ainda por aqueles que ficaram gravemente feridos ou que ainda hoje sofrem de "stress" de guerra. É, do meu ponto de vista, uma afronta a todos estes e a todos os combatentes, o que o Presidente da República decidiu conceder, assim como não quer a coisa, porque até nem fizeram publicidade do acontecimento, ao então presidente do movimento que combatia as forças portuguesas - o PAIGC. Já agora referir que Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri, por elementos do seu partido, não obstante passarem a vida a afirmar que foi por ordem da então PIDE/DGS.

Luís Dias (antigo combatente na Guiné 1971-1974)


terça-feira, 20 de dezembro de 2022



Guiné 61/74 - P23901: In Memoriam (465): Cor Art Ref Alexandre Coutinho e Lima (1935-2022)

 

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Augusto Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74) com data de hoje, 20 de Dezembro de 2022:


Caro amigo e camarada Coutinho e Lima
Partiste.


Não posso deixar de expressar toda a dor que me vai na alma pela sua partida e revelar o apreço e consideração que sempre tive por si. Destaco a sua coragem em situações de guerra muito difíceis, mas cuja perceção não esteve ao alcance de todos os seus camaradas. Foi a vítima escolhida, para outros exibirem os seus troféus de glória e se vangloriarem. Os homens que comandou da CCAV 8350, fazem aqui eco de tudo o que de bom fez por eles.
E foi muito. Eles não esquecem.

Recordo aqui um dos momentos mais difíceis da sua vida e da vida de todos nós. Guileje encontrava-se numa encruzilhada de vida ou de morte. Ataques contínuos de armamento, avançado para a época, iam destruindo todas as instalações que se encontravam ao nível do solo. Permaneciam intactos os abrigos, de betão, onde se abrigavam 200 militares e 317 elementos da população. Muita gente para pouco espaço o que, com o avançar do tempo, transportou problemas de saúde.

Tudo começou com uma emboscada, preparada com minúcia, onde as NT tiveram 2 mortos e 11 feridos, a 18 de Maio de 1973. Uma semana antes, o Comandante Chefe preparou-nos para a situação que se avizinhava e garantiu-nos que nenhum ferido deixava de ser evacuado.

Recusadas as evacuações, o Major Coutinho e Lima procurou uma saída. A picada para Gadamael estava bloqueada e a única escapatória era um pequeno riacho, a 5 km de distância, onde a Companhia se abastecia de água e que, naquele momento, estava desimpedido, o que não aconteceu no dia seguinte. Os mortos e feridos, acompanhados pelo Major Coutinho e Lima, dirigiram-se a Cacine, em botes, e posteriormente para Bissau.

Coutinho e Lima relata a situação que se vivia em Guileje, numa reunião pedida para o efeito e solicita o apoio de uma companhia de Comandos ou Paraquedistas. É recusado o apoio e humilhado... Siga para Guileje e será substituído!
Entra no aquartelamento no dia 21, debaixo de fogo, recusando permanecer na mata sob a proteção de um grupo de combate de Gadamael.

Faz o ponto da situação:
- Substituto não aparece. Encontrava-se perto, em Gadamael.
- Instalações destruídas
- Falta de qualquer apoio, apenas a Força Aérea sinalizava a nossa presença. A sua incapacidade era notória, a presença de mísseis Terra-ar era limitadora da sua atividade.
- A artilharia estava desarticulada com a troca inoportuna dos obuses, apenas um obus 14 funcionava, sem estar regulado.
- O acesso à água estava cortado.
- O moral dos militares era diminuto, agravado pela insalubridade dos abrigos, onde permaneciam bastante crianças.

Guileje está perdido. Ficar ou retirar?
Ficar significava um massacre, com mortos, feridos e prisioneiros, com elevada probabilidade. A mata em Guileje era impenetrável na maior parte das zonas e qualquer saída do aquartelamento estava condicionada ao insucesso.
Retirar de modo ordenado, antes do nascer do sol, por um trilho que só a população conhecia era a hipótese menos arriscada.

O Major Coutinho e Lima depara-se com este problema: Durante a noite a decisão de retirar ou não, altera-se. Só às 3 da manhã, decide definitivamente retirar, perante a presença de um representante da população. Desabafa que a sua vida militar terminou ali!

O Sr. Coronel de Artilharia (reformado), foi quem, corajosamente, comandou a famosa retirada do Quartel de Guileje, quando as tropas e a população estavam numa situação incrível.

Quando efectuei o Curso de Unidades Africanas, em Novembro/Dezembro de 1972, no CIM de Bolama, estive sob o comando deste excelente oficial, tendo ficado com uma muito boa impressão, quer do seu sentido profissional, quer como ser humano. Falei com ele breves palavras quando comprei o seu livro sobre a célebre retirada.

Que possa a sua alma descansar em paz. Sentidos pêsames à família enlutada.  Luís Dias 20/12/2022


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Lamentamos comunicar a toda a comunidade "Comandos" o falecimento esta madrugada do nosso General “CMD” João de Almeida Bruno.
À sua família e em nome dos camaradas do Regimento de Comandos da Amadora endereçamos desde já os nossos sentimentos.
O velório deverá realizar-se na Academia Militar de Lisboa depois de realizada a autópsia.
Biografia
General de 4 Estrelas, João de Almeida Bruno, nascido a 30 de Julho de 1935, na freguesia de Santa Isabel, concelho de Lisboa. Incorporado, em 14 de Outubro de 1952, na Escola do Exército, foi promovido a Alferes. Mobilizado para Angola, em comissão por imposição desde 5 de Maio de 1961, na Companhia de Cavalaria nº 108 e na Companhia de Cavalaria n° 148. Novamente mobilizado para Angola, em 9 de Janeiro de 1965, como Oficial de Operações e Informações do Batalhão de Cavalaria nº 745 e antes de terminar a comissão ofereceu-se para frequentar o 5º Curso de Comandos, que terminou com aproveitamento em 30 de Setembro de 1966, sendo nomeado no Oficial de Operações e Informações do Centro de Instrução de Comandos/RMA.
Em 24 de Maio de 1968, é designado Ajudante-de-Campo do Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné. Promovido a Major, em 01 de Março de 1971, é nomeado Chefe do Centro de Operações Especiais, do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné. Em 1972 é criado o Batalhão de Comandos da Guiné, que sob seu comando atingiu um extraordinário espírito de corpo e invulgar eficiência técnica.
Em 1973, é condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª classe e a Medalha de prata de Valor Militar, com palma e promovido, por distinção em combate, a Tenente-Coronel.
 No posto de General é Presidente do Supremo Tribunal Militar, de 04 de Maio de 1994 a 04 de Maio de 1998, data da passagem à situação de reforma.
Louvor
Louvado o Major de Cavalaria “Comando”, João de Almeida Bruno, pelo excepcional brilhantismo como vem cumprindo as complexas missões de que tem sido incumbido no Teatro de Operações da Guiné.
Tirando amplo partido das suas extraordinárias qualidades militares, constantemente postas à prova, e que lhe valeram, com incontestada justiça, as honrosas condecorações que ostenta, vem exercendo no Centro de Operações Especiais uma chefia altamente valorosa, demonstrando completa integração na estratégia de contra subversão em curso e apurado sentido da forma de a conduzir.
Com denodado esforço, invulgar competência profissional, alto critério, persistência e comunicativo entusiasmo, converteu o Centro de Operações Especiais num órgão de excepcional eficiência e rentabilidade, perfeitamente adaptado à transcendente missão que lhe cabe na conduta das operações, tendo ainda dedicado particular atenção e cuidado à preparação e acionamento de pequenos grupos orientados para operações especiais, que concebeu e planeou com inexcedível competência, integrando-se frequentemente nas que se ofereciam mais difíceis ou envolviam maior risco.
À testa de um grupo de militares africanos de reduzido efectivo tem percorrido o Teatro de Operações, executando acções de todo os tipos nas zonas mais perigosamente infestadas pelo inimigo, demonstrando, em circunstâncias de evidente risco de vida e junto dos seus homens, que o veneram, rara abnegação, serenidade, bravura e excepcional capacidade de decisão.
Teve especial relevância o seu comportamento nas acções “Nadia”, em Agosto de 1971, “Zavenda”, em Maio de 1972, e num golpe de mão, em Setembro de 1971, em determinada região, em que, frente ao inimigo, numericamente muito superior e debaixo de intenso fogo, conduziu com toda a serenidade a firme reacção dos seus homens, ocupando os lugares mais expostos e a todos contagiando com o seu exemplo de indómita coragem e desprezo pelo perigo.
O Major Almeida Bruno constitui-se notável exemplo de verdadeira vocação militar, e da sua última acção, em constante afirmação do mais puro idealismo, resultou grande brilho e honra para as Armas Portuguesas e para a Pátria.

Não esquecemos o apoio que nos deu (em 17 de Março de 1973) a Comandar uma força do Grupo de Operações Especiais do então Alferes Comando, Marcelino da Mata, que efectuou um Golpe de Mão a uma base IN, junto da nossa fronteira, mas no lado da Guiné Conacri, grupo que era responsável por diversos ataques a Tabancas da zona de Galomaro e flagelações ao aquartelamento do Dulombi. A operação foi um sucesso e durante dois ou três meses houve algum descanso na zona.

Que possa a sua alma guerreira descansar em paz!
 

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Texto Retirado do Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", com a devida vénia.

E depois da partida dos portugueses muitos casos como este aqui contado surgiram, para além do fuzilamento de muitos combatentes das nossas tropas.

1. Ao tempo da guerra colonial, Cuntima, junto à fronteira com o Senegal,  era um ponto importante para a segurança da província, Tinha um pelotão de artilhar,com três obuses 14, além de uma unidade de quadrícula, e agência da PIDE/DGS.  Há mais de sessenta referência no blogue sobre Cuntima.

Quem esteve em Cuntima foi o então capitão de infantaria Vasco Lourenço, hoje cor inf ref (CCAÇ 2549, Cuntima e Farim, julho de 1969/junho de 1971).

Refira-se ainda, e por fim, que Cuntima, dois anos depois da independência da Guiné-Bissau, em novembro de 1976, foi palco de cenas de terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias que tinham estado ao serviço do Exército Português,  por ordem do famigerado comandante Quemo Mané, cenas essas aqui já reconstituídas num poste memorável e corajoso do nosso amigo Cherno Baldé (***)

Esse  poste merece ser lido e relido ainda hoje: na altura, em 2013, o poste  teve cerca de meia centena de comentários e causou emoção nos leitores do nosso blogue,  até pela coragem, física e moral, do Cherno Baldé. que nos deu o OK para a pubicação  do seu texto, tranquilizando-nos: "Eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias". 

Em todo o caso, o Quemo Mané já tinha morrido, muitos anos  antes ( em 1985, em Moscovo, segundo informação do nosso amigo e camarada Carlos Silva, tendo os seus restos mortais sido trasladados para a Guiné-Bissau, e tendo sido sepultado na sua aldeia natal, nma tabanca para os lados de S João, sector de Tite, região de Quínara). Acrescente-se que há poucas referências na Net sobre este homem sinistro: o liceu regional de Mansoa tem o seu nome... Tem várias referências no Arquivo Amílcar Cabral, alojado no portal Casa Comum da Fundação Mário Soares.

Voltamos  a reproduzir este poste, parcialmente, na série "Adeus, Fajonquito" (****). Mas o relato dos acontecimentos vai integral: o Cherno Baldé não presenciou estes factos, mas reconstituiu o relato, oral,  de uma das testemunhas, o Demburri Seidi (nome fictício) (3).

Em 1975, o "Chico" já estava em Bafatá, a frequentar o ciclo preparatório e o liceu. Nâo guarda boas recordações desse tempo... Em setembro de 1979, rumaria depois para Bissau onde prosseguiu os seus estudos. "Do grupo de mais de cinquenta estudantes que com ele tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco"..

Depois, em 1986, já com 26 ou 27 anos, consegue a tão almejada bolsa de estudo para poder frequentar a universidade no estrangeiro. Por azar, calhou-lhe a URSS. Foi parar à Moldávia e depois à Ucrânia, Licenciou-se em economia pela Universidade de Kiev. Regressou da URSS, em 1990, já depois da queda do muro de Berlim... Faria ainda  uma pós-graduação no ISCTE, Lisboa, em 1992/94, já casado com Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, de origem nalu (e, tanto quanto sabemos, cristã). O casal, ecuménico, tem 4 filhos, um deles já formado em Engenharia de Energias (pela UNILAB- Universidade Internacional Lusofona Afro-Brasileira, estado de Ceará, Brasil).

Mas voltemos a novembro de 1976... e a Cuntima, na fronteira com o Senegal, a noroeste de Fajonquito (distância: cerca de 60 km), ambas as povoações fazendo parte da carta de Colina do Norte (1956), escala 1/50 mil.

Este relato do Cherno Baldé pode bem ser o último adeus a Fajonquito (****), à sua terra natal ... Vamos omitir aqui o seu extenso preâmbulo e a troca de correspondência com o autor com o editor (***) e dizer apenas, sobre o contexto, que a Guiné-Bissau tinha acabado de celebrar o 2º ano da sua independência (1):


(...) "Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!" (...)

Adeus, Fajonquito  (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte 


(ix) Cuntima: dia 14 de Novembro de 1976, o ataque ao quartel,
ódio, coragem e perfídia


Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.


(x) No rescaldo do ataque das milícias:
 medo e horror em Cuntima


Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. 

O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. 

Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou a Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané (2), que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá, mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.

[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]
______________

Notas de Cherno Baldé

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi, Sissão Seidi e  Abbaro Candé,  o homem da catana.