quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O MÉDICO DO NOSSO BATALHÃO - O PROF-DOUTOR PEREIRA COELHO


O Prof. - Dr. Pereira Coelho, actualmente.

Alf. Mil. Médico Pereira Coelho na Guiné.

Caros Amigos e Camaradas

Há uns dias atrás, mais propriamente no dia do jogo de futebol entre Portugal e a Hungria, fui surpreendido com um telefonema do meu carissimo amigo - o Professor - Doutor Pereira Coelho - que me disse que o seu contributo para o blogue estava num artigo que saíra naquele dia na revista do Jornal "i". É claro que parti logo para a compra do jornal e depois de ler o artigo telefonei-lhe de volta e falámos um pouco sobre o artigo e que, a meu ver, era extremamente importante, permitindo-me que transcrevesse para o nosso blogue alguns dos seus pontos de vista sobre aquela guerra, expostos no citado artigo.

Parece-me dispensar apresentações o nosso querido médico de Batalhão, o então Alferes Miliciano Médico, Pereira Coelho. Permitam-me, no entanto, salientar que, para além das inegáveis qualidades profissionais, tantas vezes demonstradas no apoio aos nossos combatentes, na forma como se dedicava aos problemas que surgiam de âmbito médico nas companhias do batalhão e também nas tabancas que de nós dependiam e estavam inseridas na nossa quadrícula, mas também destacar o seu elevado humanismo e sentido de camaradagem, a forma como se disponibilizava para ajudar, muitas vezes ultrapassando o seu dever, correndo risco de vida. Estas qualidades levaram a que fosse estimado por todos os oficiais, sargentos e praças e tendo conquistado, rapidamente, a amizade e admiração das populações locais.

Como também todos sabem, o Professor - Doutor Pereira Coelho foi a alma pioneira de um projecto iniciado no nosso país - a Fertilização in-vítro. Em resultado do seu trabalho e em conjunto com a sua equipa do Hospital de Santa Maria, nasce, em 25 de Fevereiro de 1986, em Lisboa, a primeira criança, graças à técnica FIV. O rapaz, de nome Carlos Saleiro (é hoje avançado no Sporting) veio dar esperança a muitos casais com problemas de infertilidade. Este acontecimento encheu-nos, claramente, de orgulho.

O Alferes Médico Pereira Coelho, adoeceu em Galomaro e foi evacuado por coluna até Bafatá e depois seguiu de avioneta para Bissau, isto porque as evacuações por hélio estavam proibidas, sendo apenas usadas para casos extremos. Este facto, que se espalhou rapidamente pelas tropas, veio provocar alguma instabilidade nas nossas forças, porque muitos perguntavam: "Se eles não vêm a Galomaro, sede do batalhão, buscar o médico, com receio de serem atingidos pelos strella, como é que vão ao mato buscar alguém, se ficar ferido?"

O nosso médico, como ele conta na entrevista, foi desvinculado mais tarde do Batalhão e passou a ser o Director do Hospital Civil de Bafatá, onde continuou a exercer com a competência e a responsabilidade que lhe são conhecidas. Foi substituído no Batalhão pelo Alferes Miliciano Médico, Rui Coelho, também ele um óptimo profissional e um excelente camarada (estabelecido na cidade do Porto).

Extractos da entrevista do Alferes Médico Pereira Coelho, salientados pelo editor, com a devida vénia ao entrevistado e ao jornal "i".

O António Manuel (Pereira Coelho) que regressa no dia 25 de Outubro de 1973 (a) é uma pessoa muio mais forte e personalizada do que aquela que sai daqui em 22 de Dezembro de 1971 (b). Melhor. Mais preparado para enfrentar a vida. Munido de resistências fantásticas reunidas en terrenos pantanosos, por entre capins colossais, mercúrio severo e iminência de assaltos e emboscadas com desfecho imprevisto".

"Posso garantir que se a nossa atitude fosse de coragem e de espírito de luta pela sobrevivência, por muito maus bocados que tivéssemos passado, acabávamos por sair de lá mais determinados do que tínhamos ido".

"Fazendo uma retrospectiva da minha vida, quase me atrevia a dizer que o mais marcante foi a minha experiência na guerra, particularmente naquele período e naquele local" (c).

"Estávamos completamente sozinhos. Tínhamos de decidir as coisas mais inesperadas, particularmente quando foram proibidas as evacuações, a não ser em casos extremos".

Depois de em certo dia lhe cairem em mãos duas raparigas em estado comatoso com quadro de meningite. "Caí na asneira de fazer respiração boca a boca a uma delas. Passados uns dias apareci com febre enorme, rigidez na nuca, falta de ar. Achei que tinha contraído a doença e pedi evacuação".
Em termos de assistência civil às populações vê-se ainda a braços com uma epedemia de febre tifóide e sarampo, com exótica manifestação nos negros....Febre, manchas brancas, tosse e conjuntivite, em centenas de miúdos. Um flagelo desenrascado com sucesso à colherada de uma solução lenta improvisada.

Num ataque medonho à tabanca (d) incendeiam os telhados de colmo e o número de mortos explode à frente dos olhos. Nesse dia debate-se com 32 feridos graves queimados e uma das situções mais críticas, na sequência da morte de um dos enfermeiros (e) que estagiara com o grupo. "O pessoal que trabalhava comigo recusou-se a acudir alguns terroristas que tinham sobrevivido. Tive de ser eu sozinho a tratar dos homens do PAIGC."

Na chegada do correio a má nova faz estalar a polvorosa. Um dos elementos do batalhão apura por carta a traição da mulher. A loucura não faz a coisa por menos. Passeia-se (f) no aquartelamento com uma granada descavilhada pronta a desfeitear a harmonia. "Andei uma noite inteira atrás dele a convencê-lo a dar um destino à granada. Não podia sair do pé dele. Se a deixasse cair por cansaço ou por livre vontade, nós os dois íamos logo. Já pela madrugada concordou atirá-la no campo de futebol. Jamais me vou esquecer dessa noite, entre as sete da tarde e as cinco da manhã".

Quando certo dia se inteiram da iminência de um ataque a Bafatá, é destacada uma companhia de pára-quedistas para bater aquela zona e tentar localizar e interceptar o grupo. Os páras cumprem a operação. Quando regressam, o sargento que os comandara pede por tudo para ser recebido pelo médico. Nenhum mal lhe acometera a carne. Tem necessidade de desabafar depois de ter localizado o grupo de combate. "O grande dilema era o que fazer. Atacar e matá-los a todos ou poder vir a ser responsável pelas consequências de um ataque quando actuassem. Ignorou-os. Mas não conseguiu aguentar sozinho aquela responsabilidade." (g)

Pela conduta em missão, é-lhe concedido um louvor pelo comandante militar, Brigadeiro Bettencourt Rodrigues. Nunca prescinde da sua arma sempre que se desloca em coluna. "Entendiam que o médico não devia usar arma. Sim, mas era médico militar. Um mero alferes no meio dos outros soldados".

Regressa à Guiné em 1992. A saudade é apenas saciada em Bafatá. O seu aquartelamento em Galomaro dista por estrada 35 tortuosos quilómetros avessos a viaturas comuns. A realidade que os sentidos alcança decepciona. "As condições eram fantásticas comparadas com o que fui encontrar vinte anos mais tarde".

O hospital militar em Bissau, um modelo na altura, assente num lençol de água, afundara-se até ao ponto de inutilização completa. No Hospital Civil Simão Mendes, albergue próprio de "quinto mundo", as condições indignas facultam pouca assistência aos locais. Cheiro nauseabundo, fezes, urina. Gente prostrada. Enfermarias irrespiráveis....".

Impressionado mas também comovido depois da passagem por Bafatá. Uma consulta de manhã. E qual não é o espanto quando os enfermeiros que com ele trabalharam o reconhecem. "Foi indiscritível porque todos se agarraram a mim a pedir por tudo para os trazer para Portugal, porque a vida não se comparava com o outro tempo. Foi um drama ter de os afastar".

O calor da recepção aumenta depois do almoço. Defronte do hospital uma multidão de 4 ooo pessoas espera-o com a recordação fresca na fala. "Ainda sabiam o meu nome. Revela até que ponto o pouco que lhes podíamos dar os marcou."
Caro Amigo
Confesso, como alías já te disse, que gostei da tua entrevista e do contributo aqui para o blogue, e também te digo que me levantaste as saudades, não da guerra, mas da sã camaradagem que vivemos naquelas terras, dos amigos que lá deixámos e do apuramento de virtudes e de carácter que transformou meninos em homens.(h) Sabes que eras bastante apreciado pelo pessoal do batalhão e fizeste por merecer esse reconhecimento. Bem hajas.
Um grande abraço para ti e que o nosso Benfica continue em grande (este ano é que é!!!).
Luís Dias

NOTAS DO EDITOR:
(a) O nosso Batalhão chega a Lisboa a 4 de Abril de 1974.
(b) O Dr. P. Coelho vai para a Guiné no navio Niassa, juntamente com o BART 3873, em 22 de Dezembro de 1971, enquanto o nosso batalhão - BCAÇ3872, partira uns dias antes, em 18 de Dezembro. Contudo, o Alf. Médico vai para Galomaro directamente, chegando à nossa zona de intervenção um mês antes de nós, porque ficámos em IAO no Cumeré.
(c) A zona de actuação do BCAÇ 3872, situava-se no leste da Guiné, com a sede do Batalhão em Galomaro e as companhias sediadas em Cancolim, Dulombi e Saltinho.
(d) A tabanca era a de Campata, que foi violentamente atacada, mas onde o IN sofreu bastantes baixas face à reacção do pelotão de milícias ali instalado.
(e) Tratava-se de auxiliar de enfermagem de origem local e que dormia na tabanca atacada.
(f) Quartel da sede do batalhão em Galomaro.
(g)De facto uma força de pára-quedistas localizou na área de intervenção da companhia de Cancolim uma força inimiga estimada em cerca de 100 elementos e solicitou ataque aéreo, recuando da zona. O grupo In terá primeiramente debandado, mas reagrupou-se e terá sido responsável pelo ataque com foguetões a Bafatá. O Sargento que comandava a força terá sido alvo de processo disciplinar por ter evitado o contacto com as forças do PAIGC. O caso foi bastante comentado entre as nossas forças, pois não era habitual que tropas especiais "retirassem" numa situação daquelas....!
(h) Era normal, no discurso de regresso à metrópole proferido pelo General António Spínola, ele referir-se ao facto das tropas chegarem ao território ainda meninos e partirem feitos homens. "Chegastes meninos! Partis homens!".